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sábado, 28 de abril de 2012

Asas da paixão

Adobe de argila, acabamento em cerâmica fria e acrílica/2012/ELAINE NOVAES FALCO



(Mais detalhes e outras fotos desta peça, estão na página "Esculturas em Adobe de Argila")

domingo, 1 de abril de 2012



MAURA & ARIEL



Maura sabia que havia um Destino para ela, em algum lugar e por alguma razão.


Porque não saberia?


Nunca soube quem era seu pai, A mãe não havia revelado a ninguém, não se sabe se nem ela sabia, ou se o pai havia recusado assumir a criança. E quando a moça morreu na hemorragia que se seguiu ao parto, levou o segredo junto com ela.


Dizem que seus avós tinham ficado muito revoltados quando sua única filha, criada com tanto amor, aparecera grávida ninguém sabia de quem. Mas Maura não tinha certeza do que o povo falava. Os avós a criaram com tanto amor quanto haviam dedicado, antes, à filha. Pena que já eram idosos, e naquela cidade pequena perfumada da brisa do mar, atendimento médico só existia nas épocas de temporada.


Primeiro, foi o avô quem faleceu, no ano em que Maura havia chegado á flor dos quinze anos. Um ano muito conturbado, aquele, marcado pela dor, pela viuvez e solidão da avozinha querida, mas também da descoberta do amor e do sexo, em uma paixão de verão, fulminante e proibida. Naquele ano Maura descobriu porque ninca se sentia atraída pelos rapazes, porque os achava bons amigos, mas agressivos, bobos, desinteressantes. Maura descobriu que seu amor era mais doce ao lado de outra mulher.


De qualquer forma, havia sido apenas um amor de verão. E quando as férias terminaram, mais do que nunca Maura apertou nos estudos, sonhando ser professora. Terminou o magistério, já dando aulas em uma pré escola local. Incentivada pela avó, entrou logo para a faculdade de pedagogia na cidade vizinha, maior. Não era nada fácil acordar muito cedo para conseguir chegar à faculdade, e voltar correndo para ainda dar as aulas pós intervalo, na pré-escola, mas o dinheiro da pensão da vovó era tão pouco, que não havia outro jeito.


Os anos passaram rápido, mas não tão rápido quanto Maura precisava... Mais uns poucos meses, e a avozinha adorada teria visto sua netinha querida subir ao tablado e receber o diploma de professora. No dia em que Maura prestou juramento, concluindo seu curso superior, não havia mais nenhum parente vivo que pudesse assisti-la na platéia. Não sabia quem era seu pai, não conhecera sua mãe, havia enterrado o avô e a avó queridos, e seu mundo se reduzia aos poucos amigos, aos alunos e a pequena casinha que lhe havia restado de herança.


Mas Maura não esmoreceu. Havia prometido isso para a vovó, que ela seguiria em frente e construiria uma família bem grande. Claro que vovó não sabia que ela não gostava de homens, mas quem precisava saber? A Deus pertence o futuro, e Deus haveria de prover uma forma pela qual Maura pudesse cumprir a promessa feita com o coração cheio de amor.


E Maura queria muito uma família grande, só não queria um homem em sua vida, a menos que fossem seus filhos... E seu destino, ela começou a traçar menos de dois anos depois, quando a vizinha desbocada e irresponsável engravidou de um turista bonitão e de paradeiro desconhecido. A fofoca se espalhou pelo vilarejo, e revoltada, a menina decidiu deixar aquela vida para trás, colocar a mochila nas costas e ir ganhar o mundo em uma cidade grande. Numa saída de escola, conversando com Maura de sua revolta, disse que iria dar a criança assim que nascida, para poder ir-se embora, livre, pois confiava mais em estranhos, do que na própria família.


E Maura pediu: porque não deixa a criança comigo?


E assim foi feito. Mal o bebê nasceu lhe foi entregue, uma menina gorducha e sorridente. Pela primeira vez, Maura se sentiu realmente feliz. Deu à menina o nome de Bruna. Deixava a criança na creche enquanto dava suas aulas, mas saía agitada atrás do bebê. Era a sua princesa, sua boneca viva e sua razão de viver.


A história correu de boca em boca. E poucos meses depois, numa manhã quente de verão, Maura abriu a porta de casa e deu de cara com outro bebê recém-nascido, abandonado e choroso, mal acomodado dentro de uma caixa de sapatos. Nenhum bilhete, nenhum registro. Maura o chamou Arthur, nome de herói.


Suas posses eram poucas, mas até vizinhos, comovidos com sua generosidade, ajudavam. E assim a história de Maura continuou a correr de boca em boca, e nos dois anos que se seguiram, mais quatro pequerruchos chegaram à sua casa.


Os gêmeos André e José foram trazidos com três anos de idade, subnutridos, entregues pela mãe doente e desesperada.


Chiquinha já´tinha sete anos quando a mãe, bêbada conhecida da pequena cidade, morrei de cirrose hepática. Ela fugiu dos avós, que batiam muito, chorou tanto que conseguiu ficar morando com Maura.


E por fim, Gabrielle, abandonada pela mãe na pracinha, também foi levada para a casa de Maura, de início como um arranjo provisório, mas dali jamais saiu.


A pequena casa de Maura quase parecia uma creche, mas ela estava por demais alegre para perceber isso. A cada algazarra das crianças, Maura lembrava o quanto era feliz, e abençoava a avozinha a quem tinha prometido formar uma família grande. A seu jeito, Deus arranja tudo.


Naquela tarde ensolarada, Ariel sentou em frente as pedras da beira mar, aonde elas formavam um pequeno precipício, e ficou horas assistindo, de longe, os surfistas coloridos, as crianças barulhentas, as famílias descansando na temporada de verão.


Mas o que Ariel pensava, era se valeria a pena continuar a viver. Seria tão simples jogar-se naquelas pedras, e terminar uma vida que ela não sabia mais porque continuava a viver.


Jamais teria coragem de assumir que era lésbica. Desde a adolescência, quando o desejo pecaminoso ardeu em seu sangue, ela fez o possível para reprimir. Demorou anos até decidir aceitar um namorado, fez questão de estudar muito e graduar até no exterior. De família muito rica, Ariel tinha tido todos os recursos e desculpas para omitir o quê era, até que a solidão foi mais forte do que o prazer escuso a que se permitia muito longe de casa. E ela aceitou um namoro tardio que, pouco tempo depois, transformou-se em um casamento.


Havia sido muito difícil, quase insuportável. Mas Ariel não ignorava que o casamento não estava baseado em amor, mas no dinheiro que provinha fácil da família dela. Ainda bem que seus pais haviam exigido a separação total de bens, quando do casamento. Porque todo aquele sacrifício, quase um ano de entediante vida a dois, havia sido em vão.


Como se arrependia de não ter feito os exames ante-nupciais.


Como foi doloroso fazê-los depois, para descobrir que era estéril. Que jamais conceberia filho algum. Que todo aquele esforço em buscar pela aparência de uma normalidade, tinha sido em vão. O divórcio foi inevitável. Mas agora Ariel não sabia mais o que fazer da própria vida, não tinha por que acordar a cada novo dia, não tinha mais condições emocionais de viver com medo de que descobrissem a aberração que ela era.


Então, ainda com a desculpa da dor do divórcio, havia dado a ela mesma aquelas férias. Sozinha, numa pequena cidade praiana, olhando as ondas do mar baterem repetidamente nas rochas, tentando encontrar uma razão para continuar a viver.



MAURA & ARIEL  


As duas se conheceram por acaso. Para incrementar a renda necessária à família, Maura fazia bonitos arranjos com conchinhas, que vendia nas feiras da praça nos meses de temporada.


Estava levando mais algumas encomendas, enquanto Ariel passeava entre as barracas. A alegria de Maura era sempre contagiante, rodeada de seus bebês e crianças. Conversaram bobagens de comadres, Ariel gostou e comprou algumas pelas de decoração feitas por Maura, e se sentiu tão leve, na companhia dela, que se ofereceu para pagar sorvete para toda a criançada.


Sorvete pra criança em dia de verão, não é convite que se recuse. Saíram todas rumo à confeitaria, e dali já não se largaram mais.


Ariel ficou fascinada e apaixonada por Maura desde a primeira vez que a viu. Nunca tinha conhecido alguém tão livre, e nunca havia sido tão feliz quanto no meio daquela família barulhenta. Voltar ao hotel ao final do dia era uma tortura até então desconhecida.


No final da primeira semana, houve intimidade o bastante na conversa para que Maura falasse de seus sentimentos e de sua opção sexual. Ariel nunca imaginou que alguém pudesse falar sobre isso com tanta naturalidade, mas, pela primeira vez na vida, vislumbrou a possibilidade de ser feliz, sendo ela mesma.


E o mais foi surgindo aos poucos. No final do verão e no final da temporada, Ariel surpreendeu a família com a decisão de comprar uma casa na pequena cidade, e ali fixar residência. Ela e Maura já eram um casal, mas ninguém sabia disso.


Juntas, elas escolheram uma casa grande, capaz de abrigar toda a família e quem mais ainda viesse. De uma forma curiosa, elas fizeram quartos separados, mas contíguos, com uma passagem secreta por dentro de uma das portas do armário embutido, na mesma parede, em ambos os quartos, Decente como queria Ariel, íntimo como preferia Maura.


E assim os anos passaram. Juntas, elas criaram um posto de saúde, e a melhor creche da cidade, e seus atos beneméritos atraíram a aceitação de sua homossexualidade. Cinco anos depois, quando Chiquinha já entrava na adolescência, e outro bebê foi abandonado, desta vez na porta do posto de saúde, Maura e Ariel decidiram que era hora de legalizar, de alguma forma, aquela união e aquela família. Afinal, a qualquer momento, Chiquinha faria delas orgulhosas avós!


(Elaine Novaes Falco/2009)